A voz cavernosa do Passado perseguia-o; todos os dias, a todas as horas. Estivesse acordado ou a dormir. Sussurrava-lhe ao ouvido: "O Futuro não existe sem mim!". E na imensidão das noites sombrias, ele tentava matá-lo. Ao Passado. A tiro, à faca e até ao esquecimento. Nada! O Passado sabia esconder-se muito bem, era perito em ficar atrás, escudando-se em Desejos defeituosos, Ilusões histéricas ou Sonhos ensonados. Ambos sabiam que teriam de ajustar contas. E, ao invés (...)
Cansada de ser pisada, encolheu-se e voltou para trás. Quem? A Rua. Sim, a Rua...aquela. Como um rio que desaguava numa extensa e ampla avenida, a Rua deixou de ser a mesma. Agora, nem Rua é. Foi tão grande a revolta que deixou à vista as pedras e terra sobre as quais assentou durante tantos anos. Uma desolação. Um drama. Quando nem as ruas resistem à multiplicidade dos excessos, é porque quem as fez também está desejoso de voltar atrás e começar tudo de novo. E (...)
Entre montanhas de Esperanças vai correndo, pachorrento, o Rio da Felicidade. O Mar das Concretizações, lá longe, espera-o com ansiedade disfarçada. De pé, nas margens próximas da foz, as pessoas lançam-lhe os Sonhos, como quem atira a linha à espera que o peixe pique. No céu, nuvens ameaçadoras pintam a alegria em tons de cinza; e as gaivotas rumam a terra em voos rasantes aos campanários, buscando outras cores. E as pessoas recolhem o Sonhos, que permanecem adiados, (...)
Quando o sujeito passa, quem para ele olhe, fica pintado das mais diversas cores. Mulheres, quase todas; homens, muitos. Acabam o dia com o rosto tingido e com a roupa a adoptar colorido diferente do que ostentava de manhã ao sair do armário. Mais importante, muito mais!, do que a coloração superficial é a profundidade que as cores atingem. Quem perder alguns minutos a olhá-lo atentamente, até a alma, habitualmente escura ou pintada de branco sujo, ganha uma paleta de mil (...)
Na Rua dos Alegres vive um homem sem sono. Procura o motivo da felicidade dos vizinhos, enquanto dormem durante a noite. Como sofre de insónia permanente, também não consegue alegrar-se, seja com o que for. Ou com quem for. Dizem-lhe que é de não dormir há tanto tempo. Não! Ele sabe. É triste porque gastou toda a alegria que o Criador lhe deixou de herança vital. Quando essa tragédia o visitou, deixou de dormir. O homem sem sono nunca imaginou que a alegria (...)
Foi quando passei as pontas dos meus dedos trémulos ao longo das tuas costas nuas que recebi a ternura melancólica do fim de tarde de verão, ainda vivia eu num doloroso inverno. O sol ia-se escondendo, tímido e sonhador, atrás do horizonte. Então percebi: a lua era, afinal, um pedaço do nosso céu.
Vinha com a pressa dos heróis. Estacionou a moto em frente às lombadas e olhou em volta, preocupado, enquanto tirava o capacete. Os livros miraram-no com desdém, pois nunca viram com bons olhos estas fugas esporádicas. Personagem que se preze, jamais abandona a sua história. Mas aquele herói é jovem; desde que herdou a moto do avô, nunca mais teve sossego. Nessa noite parecia perturbado em demasia. Lia-se nos seus gestos e no olhar de rima fácil, na confusa e (...)
A Sorte virou-lhe as costas. Foi embora. Deixou a voz de falsete colada às paredes ansiosas, lançou-lhe uma mirada míope, carregada de desdém e partiu. Ele sempre desejou a Sorte, com a força de todos os sentidos. Femeeiro como é, até esqueceu a frigidez e torpeza da figura. Que todos querem, sem sequer lhe conhecerem o empinado nariz, pendurado num rosto de sorrisos omissos, como um recital de doidos. Ego absurdo, vida celibatária. Atirou-lhe, como quem liberta (...)
Estava sentada à mesa do café. Pelos gestos e pela inquietação do seu rosto, parecia sozinha, mas não estava... não podia estar! Algo haveria de causar-lhe tanta perturbação. Os dedos finos e graciosos deambulavam entre a chávena vazia e o maço dos cigarros. Quanto ao olhar, parecia um sensor de movimentos, num tom azulado, varria o espaço entre a porta e a mesa. Ele veio! Beijaram-se apressadamente e sairam. Devido à pressa, esqueceu a caixa dos cigarros em (...)
Escondem-se das pombas e de todos os animais que transportem frieza no olhar. Contornam as bazucas, percorrem Ceca e Meca, sempre de costas voltadas para o sol; enrolam-se sobre si próprias. Claro, tanta flexibilidade é fruto da inexistência de coluna vertebal! Assim a minhoca chegou aonde quis. A terra, húmida e fria, parece ter sido feita para ela dar azo às convicções ambíguas. A terra é dela. E o mundo não será um grande amontoado de terra, cercado pelo mar?